João, divorciado, passou a conviver em união estável com Larissa em 2010. João tem dois filhos, maiores de idade, advindos de casamento anterior. No final do ano de 2015, João e Larissa compareceram em cartório e firmaram escritura pública de reconhecimento de união estável.
No início do ano de 2015, João havia passado a apresentar sintomas similares aos apresentados por portadores do mal de Alzheimer. Em julho de 2015, esses sintomas se agravaram: João começou a não reconhecer pessoas da família, mostrando-se também confuso quanto a datas e fatos recentes. Diante dessa situação, Larissa o levou para uma consulta médica no referido mês, ocasião em que foi constatada pelo médico a doença de Alzheimer em João.
João era sócio majoritário da empresa X Ltda., constituída em 2005, e extraía dessa empresa sua fonte de sustento e de sua família. Em setembro de 2016, Larissa, valendo-se de uma procuração lavrada por escritura pública e sem prazo determinado outorgada a ela por João no início da convivência entre eles, promoveu, por instrumento público, a cessão gratuita das cotas sociais de João a Janete, irmã de Larissa.
Em março de 2017, um outro médico atestou que, de fato, João apresentava mal de Alzheimer. Com base nesse atestado, Larissa ajuizou, nesse mês, ação de interdição e foi nomeada sua curadora provisória, em decisão liminar. No decorrer do processo, foi produzida prova pericial para avaliar a capacidade de João para praticar atos da vida civil e foi expedido laudo pericial que constatou o estado físico-psíquico de João, de fato acometido pelo mal de Alzheimer. Nesse mesmo processo, o Ministério Público, em parecer, opinou pela intimação da requerente para emendar a petição inicial, sugerindo que o pedido fosse alterado de modo a contemplar forma mais branda de proteção à pessoa de João, haja vista sua condição de saúde. Esse parecer não foi acolhido pelo magistrado; em julho de 2017, foi proferida sentença que confirmou a decisão liminar e decretou a interdição. Tal decisão transitou em julgado no mesmo mês.
Em agosto de 2017, os filhos de João tomaram conhecimento da referida cessão das cotas e ajuizaram uma ação anulatória com vistas a invalidar todos os atos civis praticados por João a partir de 2015, quando os sintomas da doença foram percebidos, baseando o pedido na alegação da incapacidade de João em virtude da doença. Ao longo do processo, foi produzida prova suficiente para deixar inequívoca a incapacidade de João desde 2015; no entanto, o pedido dos filhos de João foi julgado totalmente improcedente pelo juiz, que baseou sua sentença no entendimento do STJ de que a sentença de interdição tem natureza constitutiva e opera efeitos ex nunc. O magistrado entendeu que a incapacidade de João teve início com o trânsito em julgado da sentença de interdição e que, por essa razão, João era juridicamente capaz tanto no momento do reconhecimento da união estável quanto da cessão das cotas.
Considerando essa situação hipotética, redija um texto dissertativo atendendo ao que se pede nos itens 1 e 2 e respondendo ao questionamento do item 3.
1 Comente, de forma fundamentada, o parecer do Ministério Público mencionado no texto, indicando os institutos protetivos existentes no ordenamento jurídico brasileiro, fazendo a distinção entre esses institutos e citando a legislação aplicável e as alterações que provocam no regime jurídico da capacidade civil.
2 Explicite os efeitos jurídicos da sentença de interdição sobre a capacidade civil de João, abordando também sua eficácia no plano temporal.
3 Considerando-se a prova produzida nos autos e a jurisprudência do STJ, a sentença proferida na ação anulatória está correta?
Justifique sua resposta, observando a natureza diversa dos atos praticados (reconhecimento da união estável e escritura pública
de cessão de cotas).
A partir da edição do Estatuti da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15), a curatela passou a ser compreendida como uma "medida protetiva extraordinária proporcional às necessidades e circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível" (art. 84, §3º). Em todo o caso, a curatela afeta apenas os atos relacionados aos direitos de ordem patrimonial (art. 85, caput, EPD) e, idealmente, deve o juiz definir seus limites, conforme as potencialidades da pessoa a ser protegida.
vê-se, pois, que a concepçao de interdição para todos os atos da vida civil, após o advento da Lei nº 13.146/15, está ultrapassada, mormente porque uma miríade de aspectos personalíssimos não são afetados pela medida (art. 85, §1º, EPD).
Isso explicado, cumpre observar que o parecer ministerial, no sentido da emenda à inicial para contemplar forma mais branda de proteção à pessoa de João, embora aparentemente consentânea com o espírito minimalista que anima a novel legislação, não parece ser o mais adequado.
Explico: O instituto aludido pelo Parquet é a tomada de decisão apoiada, procedimento por meio do qual uma pessoa elege outras duas, idôneas e com as quais mantenha vínculos, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre os atos da vida civil (art. 1783-A, caput, CC). Nesse procedimento, a própria pessoa a ser protegida ingressa com o pedido em juízo, apresentando um plano constando os limites do apoio e os compromissos dos apoiadores, além de indicá-los expressamente (art. 1783-A, §§ 1º e 2º, CC). Importante notar que a tomada de decisão apoiada não implica alteração na capacidade civil da pessoa apoiada.
Vê-se, pois, que a tomada de decisão apoiada exige uma razoável dose de autonomia da pessoa a ser apoiada, que literalmente assume a iniciativa da medida.
No presente caso, porém, um terceiro (Larissa) requereu a interdição de seu companheiro. Iniviável, portanto, a conversão da interdição em tomada de decusão apoiada, principalmente ante a ausência de manifestação de vontade de João.
Os efeitos jurídicos da sentença de interdição sobre a capacidade civil de João consubstanciam-se no reconhecimento da incapacidade relativa do interditando, com fulcro no artigo 4º, III, CC. Prevalece o entendimento de que a interdição possui natureza constitutiva, de modo que João será considerado relativamente incapaz somente após a decisão judicial. Em outras palavras, dispensa-se a prova da incapacidade de João para os atos da vida civil de natureza patrimonial praticados após a sentença, presumindo-se anuláveis (art. 171, I, CC).
A despeito desse entendimento, compreende-se que a sentença proferida na ação anulatória não está correta. Isso porque restou cabalmente comprovado naquele procedimento que João não gozava plenamente de suas faculdades mentais desde 2015. Muito embora prevaleça que a sentença de interdição tem natureza constitutiva (efeitos ex nunc), isso não impede a impugnação judicial de atos praticados anteriormente. Desse modo, provada a incapacidade fática de João desde 2015, passível de anulação os atos da vida civil de caráter patrimonial/ negocial praticados por João. O reconhecimento da união estável, porém, não é alcançado pela mesma conclusão, uma vez que existencial e, por consequencia, não abarcado pela interdição.
QUESTÃO
PEÇA
SENTENÇA
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