Disserte sobra concurso aparente de normas: conceito, princípios, antefato e pós-fato impuníveis.
Diante do colossal número de normas penais que existe em nosso ordenamento jurídico, não raras vezes o intérprete se encontra em situação angustiante, tendo que decidir qual a norma aplicável para determinado fato.
A proximidade de alguns crimes aumenta ainda mais essa angústia, na medida em que a definição, no mais das vezes, passa pela análise de mais de um crime. Como saber, por exemplo, por qual crime responde (homicídio ou lesão corporal) aquele que atira em direção a outrem lesionando-o? Ou aquele que obriga outrem a lhe entregar certa quantia de dinheiro (roubo, extorsão ou exercício arbitrário das próprias razões?
Esse conflito que se estabelece, de acordo com ensinamentos doutrinários, é meramente aparente, pois não subsiste diante de uma análise mais rigorosa.
Pode-se conceituar, portanto, o conflito aparente de normas como a situação em que um fato se subsume, ab initio, a mais de uma norma penal incriminadora, reclamando do operador do direito a utilização de critérios específicos para a sua solução.
A princípio, há de se destacar que o conflito aparente de normas não se confunde com o concurso de crimes, na medida em que, neste último, há uma pluralidade de fatos subsumindo-se a um ou mais tipos penais. No conflito aparente de normas, há um único fato.
Passemos a analisar os critérios hermenêuticos para a solução deste conflito, na seguinte ordem: critério da especialidade; da subsidiariedade; da consunção; e da alternatividade.
O critério da especialidade parte da ideia de que a lex specialis derroga a lex generalis. Em outras palavras, havendo para o mesmo fato a incidência de duas normas, sendo uma de caráter geral e a outra especial, prevalecerá, na espécie, esta última, dada a sua partícula especializadora. É o que ocorre, por exemplo, entre o crime de ameaça e roubo: a partícula especializadora do crime de roubo consiste na subtração praticada em conjunto com a ameaça, afastando a aplicação desta última norma.
O critério da subsidiariedade, por sua vez, traz consigo a ideia de que há um tipo principal e um subsidiário, de sorte que, não havendo a ocorrência do principal, subsiste a figura subsidiária. O tipo subsidiário, assim, funciona como tipo de reserva, conforme lição difundida na doutrina.
Essa subsidiariedade pode ser tácita ou expressa. Haverá subsidiariedade expressa nos casos em que a própria lei afastar a aplicação do tipo diante da ocorrência de outro mais grave (ex.: o crime de perigo para a vida ou saúde de outrem, previsto no art. 132 do Código Penal). Por seu turno, haverá subsiariedade tácita quando o tipo reserva funcionar mesmo sem a ressalva legal. Neste caso, a incidência do tipo subsidiário decorre de um confronto entre tipos penais (ex.: a lesão corporal é subsidiária do crime de homicídio).
Já o critério da consunção, também chamado de absorção, pressupõe a existência de um crime que seja normal fase ou meio necessário para a realização de outrem. Por exemplo, o constrangimento ilegal é norma fase para o crime de extorsão. Da mesma forma, a falsificação de um documento pode ser meio necessário para o crime de estelionato.
Talvez dentre os critérios, seja este o que tenha mais exemplos, dada a ligação entre os fatos que compõem uma conduta delituosa. É ainda aqui que se inserem os conceitos de antefato e pós-fato impuníveis. Como estas situações revelam uma normal fase de um crime, elas não são puníveis.
Há antefato impunível quando um fato realizado anteriormente se destina à realização de uma conduta criminosa na sequência. A súmula 17 do Superior Tribunal de Justiça denota bem isto: quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido. O falso, no caso, cuida-se de um antefato impunível.
Há, por seu turno, pós-fato impunível quando o fato subsequente a outro criminoso é considerado impunível porque também é tido como uma fase necessária do delito. Por exemplo, não pratica receptação o autor do crime de furto que oculta a coisa móvel substraída. Trata-se de um pós-fato impunível.
Dois pontos merecem apontamentos. O primeiro respeita à distinção entre os critérios da subsidiariedade e da consunção. A diferença entre ambos não é de fácil assimilação, já que, em última análise o tipo penal subsidiário resta absorvido pelo tipo principal. Todavia, consoante ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci, para distingui-los é importante partir da seguinte premissa: enquanto a subsidiariedade trabalha com tipos penais, a consunção trabalha com fatos. A partir daí, é possível diferenciá-los com segurança.
O segundo se refere à relação que estabelece entre o crime tentado e o consumado. Qual o critério que se utiliza para diferenciá-los? A especialidade ou a consunção? Não há unanimidade na doutrina, havendo posicionamento em ambos os sentido. No entanto, dada a relação de continente e conteúdo que se estabelece entre as fases do iter criminis (o início dos atos executórios é normal fase para a consumação), o correto é concluir que o crime consumado absorve o crime tentado.
Finalmente, o último critério é o da alternatividade. Não há aqui consenso na doutrina sobre ser ou não a alternatividade um critério para a solução do conflito aparente de normas. Prevalece atualmente que não é. Com efeito, a alternatividade pode ser vista de duas formas. Em um primeiro momento, a capitulação de um fato em um determinado tipo penal afasta a incidência do outro (ex.: capitulado o crime de roubo resta afastada a grave ameaça). Em um segundo momento, a alternatividade incide para os tipos mistos alternativos, ou seja, para aqueles em que há mais de uma ação nuclear e a consumação se dá com a realização de apenas uma, de modo que, caso realizadas outras condutas, não há que se falar concurso de crimes (desde que no mesmo contexto fático; ex.: o traficante que adquire a droga e traz consigo para fornecê-la, embora incorra em dois verbos previstos no art. 33, caput, da Lei 11.343/06, não incorrerá em concurso de crimes, diante da alternatividade).
Ocorre que as duas vertentes da alternatividade não se sustentam. No primeiro caso, se já ocorreu a capitulação foi porque incidiu um dos critérios acima - especialidade, subsidiariedade ou consunção. No segundo caso, não há um conflito aparente de normas, pois os verbos estão no mesmo tipo penal. Justamente por isto é correto não inseri-la como um dos critérios de solução do conflito aparente de normas.
De tudo o que foi exposto, é possível reafirmar o que já se disse: o conflito que se estabelece é meramente aparente, passível de superação acaso utilizados os critérios acima - com exceção da alternatividade.
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