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6 de Março de 2017 Artigos jurídicos · Temas diversos
Escolas, por prisões, há vinte anos

O ano de 2016 foi o ano que não terminou. Ao menos, é o que parece ter sucedido pelo que se depreende da sensação decorrente de inusitados episódios da cena política, aliados à própria análise da opinião pública especializada. Não bastassem as dificuldades econômicas e políticas enfrentadas, não apenas no Brasil e América do Sul, mas igualmente nos demais continentes, as desalentadoras notícias dos últimos meses, em múltiplas direções, causam séria perplexidade e ausência de boas perspectivas do que virá pela frente.

Certamente, no Brasil, essa impressão nos invadiu com maior ênfase, tanto a contar do ponto de partida de 2016, como também na chegada de 2017. Em verdade, notabilizou-se o avanço de uma tormentosa conjuntura de interesses políticos, cuja malícia retrata situacionismo oportunista e imoral, que aparenta distância de um fim. Voluntarismos nada republicanos, ganância incondicional, utilização de favorecimento pessoal, preconceito e boa dose de intolerância de classes, por parte daqueles que, em tese, deveriam prezar pela elevação do mais respeitável interesse público, são traços que giram em torno do atual período histórico em que vivemos.

Escândalos trazidos à tona, por meio de delações premiadas e acordos de leniência, ora firmados junto aos órgãos de persecução penal, como o Ministério Público, Polícia e Justiça Federal, por exemplo, acarretam necessidade de questionar-se aí é retomada urgente de valores éticos. Nisso, vem a calhar recente afirmação do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Roberto Barroso, em entrevista concedida a um jornal: “Quase toda licitação relevante você tira a tampa e tem problemas. Estamos vivendo a crise de um país em que a delinquência se generalizou como regra.”(1)

A acompanhar esse recorrente desvio de postura republicana, algo de muito desanimador novamente sobressai no cenário nacional, quando ainda se imaginava, por pura esperança, haver uma luz no fim do túnel. Com efeito, diversas intercorrências infelizes podem ser aqui rememoradas.

Exemplo traumático e que chocou a sociedade cuida-se do acidente aeronáutico ocorrido, no último dia 19 de janeiro, matando o Ministro, Relator da Operação Lava Jato, no Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki, além outras quatro vítimas. A catástrofe trouxe consigo, num momento inédito e crucial de revelação de temerosas transações, um sentimento de patente desilusão em relação à adequada condução de combate à corrupção, que vinha acontecendo ao longo dos últimos anos. Sobre a fatídica tragédia, uma expressão, por meio da palavra do Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot: “Inacreditável. 2016 não acaba. É a era de Aquarius ao inverso.”

Por certo, recobrando um recente cenário, o país vivenciava efetiva mudança de paradigma no que diz respeito ao tema do combate à corrupção. Pela primeira vez na história, criminosos de colarinho branco e alguns políticos da classe dominante vinham sendo punidos, e a esperança dessa virada, nos eixos da história criminal e política brasileira, residia no desejo de trazer à tona explicações, com as devidas sanções legais, àqueles que se empoderaram um sistema público estatal, porém, a rigor, encoberto nebulosamente pela rapinagem, insensatez e cupidez.

Assim, o percurso histórico da Lava Jato e outras operações fizeram crer, nos últimos anos, a possibilidade, a despeito da sua distância da completude no presente, de aplicação da lei àqueles que, ilegitimamente, viram suas costas para os interesses públicos mais basilares, visando atingir imediatas vontades de cunho pessoal, num movimento complexo de transações e loteamento pessoal da máquina pública, em detrimento da busca pelo desenvolvimento econômico e de uma sociedade justa fraterna e igualitária, como faz crer os fundamentos jurídicos constitucionais (art. 3º CRFB/88).

A esse quadro lamentável, agrega-se, já nos primeiros momentos do ano de 2017, outro infortunado drama responsável por grave tensão no sistema penitenciário nacional. Uma disputa por poder, entre duas facções criminosas, motivou uma onda de violência em presídios da Região Norte e Estado do Rio Grande do Norte, implicando na maior tragédia, com vítimas fatais, em estabelecimentos prisionais no Brasil, desde o famigerado massacre do Carandiru, no ano de 1992, quando foram 111 presos vitimados.

A cronologia dessa atual guerra originou-se, segundo fora apurado, em virtude de disputa pela comercialização internacional de entorpecentes ilícitos, cujo trajeto perpassara na fronteira do Brasil, situada no Estado Mato Grosso do Sul, com o país vizinho, Paraguai. A motivação para isso teria se iniciado, em junho de 2016, quando fora assassinado um membro de uma das facções, num tiroteio de que perdurou por 4 horas.

Ao final de uma sequência de incidentes e desastres, durante o mês de janeiro de 2017, o saldo de homicídios subira para 134, em apenas quinze dias, nas capitais, Manaus, Boa Vista e Natal.

É importante frisar, contudo, que, no decorrer dessa barbárie, o governo brasileiro e suas autoridades foram incapazes de demonstrar habilidade de comando, postura firme ou mesmo tomada de estratégia eficiente em termos de segurança pública, fatores que, certamente, postos imediatamente em prática, viabilizariam a conversão, já nos primeiros momentos, da sequência de violência perpetrada. Após muitos tropeços, divergências entre autoridades, e até a demissão de um secretário do Governo – cujas palavras ressoaram o desejo de maior mortandade e “uma chacina por semana” –, a solução encontrada, tristemente, repousou numa decisão tão quanto tacanha, visando o destacamento de contingente de homens das Forças Armadas, para atuarem dentro das prisões brasileiras.

Por certo, o destacamento, na forma adotada pelo Governo Federal, causa certa estranheza entre especialistas na área de segurança pública, haja vista o foco destinado à operação, cujo sucesso requer treinamento e capacitação especializada para atuar no interior de presídios. Além disso, a medida levada a efeito detém um provável impeditivo jurídico, em razão da sobreposição de atribuições da União em num âmbito de trabalho atinente aos Estados. Sob essa ótica, o renomeado professor Roberto Dias, na área de Direito Constitucional da FGV – Fundação Getúlio Vargas – ressaltou que “a atuação das Forças

Armadas é prevista quando todas as alternativas foram esgotadas. O que existe é uma situação não enfrentada há muito tempo”. (2)

A verdade é que há um imenso desafio governamental relacionado ao sistema de segurança no País, e, com efeito, o resultado de uma contínua e renitente omissão estatal em enfrentar o problema, durante anos a fio, implica, consequentemente, num vazio, a repercutir no descontrole da segurança para lidar adequadamente com o engrandecimento da violência, em suas mais amplas facetas, incidindo sempre em prejuízo a todos os segmentos da nossa sociedade.

Destaca-se que prejuízo aqui alertado detém natureza financeira, não apenas social. Tanto assim é que, em 16 de fevereiro deste ano, o Supremo Tribunal Federal compreendeu, em decisão vinculante – por meio do instituto jurídico da repercussão geral –, que o “preso submetido situação degradante e a superlotação na prisão tem direito a indenização do Estado por danos morais.” (3)

De tudo isso, chama-se atenção para o que emerge de mais grave hoje do sistema penitenciário. Trata-se, mormente, do cotidiano das pessoas que o habitam, e são simplesmente denominados, socialmente, como presos. Reporta-se aqui a uma multidão de detentos, comumente – mas nem sempre –, com alto nível de periculosidade social, contudo, ainda sim seres humanos que, ao se amontoarem insalubremente e desorganizadamente, em situação precaríssima à saúde, revertem, por pura inapetência estatal, num ciclo com idas e vindas, em violência e atraso para o desenvolvimento do País à própria comunidade nacional. Há diversos episódios históricos que se assemelham como os recentes das penitenciárias do Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte. E nada obstante os alertas e tragédias experimentadas, como o malfadado massacre do Carandiru, ou num passado recente, o exemplo do episódio de Pedrinhas no Maranhão em 2010, pouco ou nada de positivo foi efetivado na tentativa de barrar a escalada do crime organizado no País.

Insta frisar que os reflexos da desorganização estatal, à toda evidência, ressurtem nos presídios, locais propícios para a projeção da delinquência onde muitos malfeitores se reúnem num vácuo em que o estado se faz omisso.

Sob essa ótica, ilustrativo rememorar o entendimento da Ministra Maria Thereza Assis Moura, em artigo publicado, ainda no ano de 2000, acerca da crise do sistema carcerário:


“(...) não podemos nos esquecer que a criminalidade e o recrudescimento da violência urbana têm preocupado diuturnamente os cidadãos e as autoridades, conduzindo à Política Criminal, na qual a prioridade da garantia à liberdade tem cedido lugar, por vezes, ao estabelecimento de instrumentos e critérios cada vez mais repressivos (...) ” (4)


Nessa senda, oportuno abrir aqui um parêntese, a fim de, ao menos, estampar uma proposição positiva, no sentido de reafirmar que nosso país detém um aperfeiçoado sistema jurídico de combate à criminalidade, violência e crime organizado. Ao longo dos anos, acolheram-se moderníssimas normas de Direitos Humanos, tanto no âmbito interno – dentre as quais se destacam a Constituição de 1988 e Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/1984) –, assim como também perante o arcabouço de direito internacional, ratificando-se a República do Brasil dois instrumentos fundamentais: Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

Conquanto esse panorama teórico seja um ilustre começo, a política de segurança nacional é por demais retrógada, e seus mecanismos de ação a fazem omissa e truculenta ao atuar, em especial, em relação ao tema das condições do preso.

Fácil perceber que a promulgação de inúmeros textos legislativos, por mais criteriosos e adequados que sejam, em seu conteúdo, não asseguram sucesso contra a disseminação do crime e a desejada pacificação social. Ao contrário, isso revela que, malgrado a presença de um sistema jurídico sólido, a insistência numa postura prática incorreta, baseada na força e segregação de classes, reaviva, num ciclo exponencial, a escalada da criminalidade, gerando, numa lógica invertida, um vácuo estatal onde a primazia da lei deveria imperar, abrindo-se temerário espaço para o livre escalada do crime organizado.

Segundo o Relatório de 2014 do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, o Brasil possui a quarta maior população carcerária do Planeta em números absolutos, ficando atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. Em números relativos, ou seja, presos por habitante, semelhantemente, encontramo-nos com a quarta maior população carcerária. Em relação à contagem de presos provisórios – sem condenação definitiva –, também estacionamos com a quinta maior taxa mundial (41%).

Não bastassem esses alarmantes índices, há um dado talvez mais preocupante. O Relatório informa uma exponencial elevação da taxa de aprisionamento, a qual, nas últimas décadas, e especialmente no período de 1995 a 2001, emergiu para 136%, conduzindo o Brasil para a segunda posição mundial nesse aspecto.

De conseguinte, ao levarmos em conta quatro países com a maior população carcerária do Mundo (EUA, China, Rússia e Brasil), temos a maior taxa de seres humanos segregados pelo uso da força legitimada do estado. Em última análise, é afirmar que a quantidade de detentos brasileiros superou proporcionalmente, nos últimos anos, a, de todos os países com alto nível de presidiários.

Com base nesse trágico painel numérico e considerando também o sobressalto insistente da violência, depreende-se que promulgação das diversas leis penais destinadas ao recrudescimento elevação em abstrato da sanção privativa de liberdade não traduziram, em contrapartida, qualquer resultado social positivo.

A rigor, legislações tidas como severas, como a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), conduziram ao imaginário do cidadão comum brasileiro a falsa percepção de que o endurecimento das penas iria dissuadir o sujeito propenso a delinquir ou ao menos reprimi-lo com eficiência. Ledo engano! O efeito foi, perversa e difusamente, contrário.

Nessa ordem, ainda colacionando a compreensão da jurista acima citada,


“A realidade tem mostrado, porém, que a adoção da ‘política da segurança’ não reduziu a criminalidade; as prisões continuam superlotadas; sendo inegável que o clima prisional piorou de maneira considerável, com a eclosão quase diária de motins, fugas e a recém-criada figura do ‘resgate’ de presos nas delegacias de polícia. “. (5)


Destarte, a partir da análise sobredita, indicando o fracasso de um sistema penal fundamentado na pena privativa de liberdade como o principal mecanismo de resposta contra a prática do crime no Brasil, afigura-se relevante finalizar toda essa digressão, com uma breve reflexão.

E nesse caminho, válido sobressaltar que o legislador penal elegeu o “patrimônio” como o bem jurídico merecedor de maior proteção dentro do sistema. Tipos jurídico-penais dessa natureza, a exemplo do furto simples (art. 155 do Código Penal, com pena de 1 a 4 anos), revestem-se de uma pena muito mais graduada que, por exemplo, a lesão corporal simples (art. 129 do CP, pena de três meses a um ano). Paralelamente, tipos penais que buscam assegurar a honra do indivíduo, como calúnia (art. 138, 6 meses a dois anos) ou injúria (art. 140, um a seis meses), também tiveram uma roupagem de somenos importância pelo legislador.

Nem se fale aqui, em formas qualificadas de crimes patrimoniais. O furto qualificado, a título de exemplo, (art. 155, §4º), cuja tipificação nem sequer envolve violência à pessoa, reverbera uma ótica quadruplicada da pena privativa de liberdade, em relação ao tipo penal da calúnia.

Em vista disso, considerando que nosso sistema legislativo enaltece e sobreleva o patrimônio, sobressai daí uma instigante constatação:


“(...) se no interior de uma sociedade dividida em classes, são aquelas pessoas localizadas no topo da pirâmide social, que possuem patrimônio considerável, conclui-se que a severidade da norma penal, destina-se não a estas, mas sim, aquelas pessoas que estão localizadas na base desta pirâmide .” (6)


É dizer, no Brasil, o delito como instituto jurídico e o sistema de segurança pública existentes, por serem fenômenos sociais e políticos, retratam um produto escolhido pela própria sociedade. Cumpre a esta não se deixar iludir, no caminho de reprimir com exponencial severidade, por castigo ou vingança, aquelas pessoas que se posicionam na base da pirâmide, logo, os mais pobres – todo erro volta-se em detrimento da própria sociedade.

Assim, por qualquer ângulo que se analise a situação prisional no país, resulta a comprovação de seu fracasso e sua inutilidade para as finalidades buscadas pelo Direito Penal. A mantermos uma organização estatal altamente repressiva, a qual se resume a amontoar uma massa de delinquentes à outra de presumidamente inocentes, sempre pobres, em espaços insalubres, em risco de morte, sem oportunidade de remissão de pena, trabalho ou ressocialização, está-se a cativar um verdadeiro barril de pólvora. Os resultados revertem-se inevitavelmente de forma negativa no próprio seio social, onde, apesar de todos esses aspectos negativos, afiguram-se os cidadãos obrigados a arcar financeiramente sua manutenção. Lembre-se de que o gasto anual dos presídios para os cofres públicos gira em torno de 17 bilhões de reais, cerca de R$ 2.400,00 mensais para cada detento.

Talvez, o início de uma reforma eficaz do sistema jurídico penal restrinja-se a utilizar, com maior eficiência, penas alternativas, atreladas a um acompanhamento fiscalizatório adequado quanto a seu cumprimento. A segregação corporal há de prevalecer para situações de presos perigosos, autores de crimes violentos. É tão que pequenos traficantes e ladrões de galinha praticam crimes, sem qualquer violência, e normalmente, ao serem capturados em flagrante, encontram-se desarmados, cuidando-se, no mais das vezes, em vítimas do grande tráfico.

Insistir no encarceramento é investir na criminalidade desenfreada tornando a vulnerabilidade do preso em massa de manobra para grandes organizações criminosas que atuam dentro e principalmente fora dos presídios.

Feita essa análise, é mais que oportuno finalizar, colocando em consideração outra uma espantosa notícia representada pela divulgação do índice PISA, na qual se faz uma conexão entre o fatídico ano de 2016 com o limiar de 2017. Os índices do estudo lançado pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), relativos a 2015, e divulgados em dezembro de 2016, revelaram a penúria em que se remansa o sistema educacional, indicando o Brasil nas piores colocações num total de 69 nações avaliadas. Daí a relevância de coligir esse tema final para a reflexão. Será provável diminuir a criminalidade, organizar o sistema de segurança nas prisões e nas cidades, oferecendo aos brasileiros uma Educação desse porte?

Ou quem sabe ainda, devamos olhar com atenção aquela famosa frase, dita em 1982, por Darcy Ribeiro: Se os governadores não construírem escolas, em vinte anos faltará dinheiro para construir presídios.


1 - http://www.conjur.com.br/2016-set-05/entrevista-lu...

2 - http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/01/1850566-temer-fala-em-crise-nacional-e-anuncia-forcas-armadas-dentro-de-presidios.shtml

3 - http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe...

4 - Execução Penal e Falência do Sistema Carcerário, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 8, n.29, pág 351-363, janeiro-março de 2000.

5 - Op. Cit.

6 - Consuelo da Rosa, O conselho da Comunidade: apontamentos sobre sociedade e direito penal. Revista Transdisciplinar de Ciências Penitenciárias, Pelotas, v. 1, n. 1, pág. 189.

Autor: Antônio Lúcio Túlio de Oliveira Barbosa (Juiz Federal)
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