João, suspeito de um roubo à agência da Caixa Econômica Federal de Campina Grande/PB, ocorrido em 20/6/2012, foi preso em flagrante no dia 3/1/2013, durante diligência de cumprimento do mandado de busca e apreensão, de que resultou a descoberta de R$ 900.000,00 (novecentos mil reais) em espécie enterrados no quintal de sua residência.
Considerando essa situação hipotética, pronuncie-se sobre a validade da prisão de João.
Trata-se de hipótese de prisão em flagrante delito por crime permanente de lavagem de dinheiro, previsto no art. 1º da Lei 9.613/98, alterado pela Lei 12.683/2012, na modalidade ocultação. O crime, que também é chamado branqueamento de capitais ou Money loundering, necessariamente exige a prática de um crime antecedente.
É o dispositivo: “Art. 1º Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal." (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012).
Ocultar significa esconder, simular, encobrir, e já foi reconhecido em precedente do TRF 2ª Região, no ato de esconder quantia proveniente de atuação de organização criminosa em parede falsa de apartamento. (HC 5355, 1ª Turma Especializada, 12.12.2007).
O tipo é misto alternativo e se perfectibiiza com a realização de qualquer das condutas, não sendo exigida para a configuração do crime a conversão em ativos lícitos, que também é uma das modalidades dos crimes previstos na lei.
É crime comum, e que pode, em nossa legislação ser cometido pelo próprio sujeito ativo da infração penal antecedente, diferentemente da receptação(CP, art. 180) e do favorecimento real (CP, Art. 349). Foi uma opção política do nosso legislador punir a autolavagem. Diferentemente, na Alemanha, Itália e Áustria, o autor da antecedente não é considerado autor do crime de lavagem, e isso é permitido por norma da Convenção de Palermo.
Antes da referida alteração em 2012 o rol de crimes antecedentes era taxativo, somente poderiam ser crimes antecedentes os ali previstos (classificando-se a legislação brasileira então, relativa à lavagem, de segunda geração), tendo havido mudança, trazida no final do dispositivo prevendo genericamente “infração penal” (qualquer infração penal, inclusive contravenção). A título de conhecimento as legislações de primeira geração incriminavam a lavagem decorrente de ilícitos de tráfico de drogas.
Atualmente passamos a um sistema legal de terceira geração, no qual o delito de lavagem de dinheiro pode ocorrer tendo como precedente qualquer ilícito penal. Fala-se em rol aberto. São exemplos também a Argentina, França, Estados Unidos da América, Itália, México e Suíça.
O § 1º, em seu inciso II tem ainda regra esclarecedora da situação: “Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal: II- os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere.” Guardar significa manter sob vigilância ou cuidado em favor de terceiro, já ter em depósito é manter, armazenar, conservar, reter, por conta própria.
Apesar da exigência da infração antecedente há, conforme o art. 2º, II, uma relação de acessoriedade, denominada acessoriedade limitada, bastando a comprovação da tipicidade e da ilicitude da infração antecedente. O dispositivo prevê que o processo e julgamento do crime de lavagem independem do processo e julgamento das infrações antecedentes, ainda que praticadas em outro país, cabendo ao juiz competente para o crime de lavagem decidir sobre a unidade do processo e julgamento. Assim, a lei consagrou a autonomia do processo e julgamento do crime de lavagem, o qual não terá necessariamente tramitação conjunta com o processo que apura o crime antecedente, podendo inclusive ser apurados em foros distintos.
A lavagem de dinheiro possui natureza acessória, parasitária, derivada ou dependente, mediante relação de conexão instrumental e típica com ilícito penal anteriormente cometido. Podemos afirmar que a lavagem de dinheiro é, nessa linha, um “crime remetido”, pois sua existência depende de fato criminoso anterior (antecedente penal necessário).
Parte da doutrina se inclina a defender a necessidade de um juízo de certeza em relação à infração antecedente, em respeito à presunção de inocência, e que seriam insuficientes os meros indícios da infração pretérita para a condenação pela prática de lavagem.
A interpretação do § 1º do art. 2º da lei 9.613/98 nos permite extrair que para uma condenação por lavagem de dinheiro não é necessária a condenação pela prática da infração antecedente, a qual, contudo, deve estar comprovada nos autos, ainda que por meio de indícios, não como uma prova semiplena ou precária, mas sim como prova indireta, indiciária (art. 239, CPP). O RE 133.9444-PR de 27 de abril de 2010, do STF aceitou expressamente a prova indiciária.
Conforme jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, o crime de lavagem é permanente, desse modo autoriza-se a prisão em flagrante a qualquer momento, tendo em vista que a conduta criminosa se protrai no tempo, e não em um momento definido e específico, mas em um alongar temporal. Quem oculta e mantém oculto algo, prolonga a ação até que o fato se torne conhecido. A característica de crime permanente foi confirmada em recente decisão no ano de 2017 na AP 863, julgado pela 1ª Turma, no conhecido caso do Deputado Paulo Maluf.
Tanto é assim que a sumula Súmula 711 do STF autoriza a aplicação da lei penal mais grave a crime continuado ou ao permanente se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou permanência.
A descoberta do produto do crime de roubo, e que é também no caso particular prova do delito de lavagem se deu em cumprimento a Mandado de Busca, o que valida os procedimentos que levaram ao numerário. O artigo 240 do CPP indica que proceder-se-á à busca domiciliar quando fundadas razões a autorizarem, para, entre outros: apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos, descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu, colher qualquer elemento de convicção, coadunando no caso com a suspeita que pesava sobre João relativamente ao roubo à CEF.
Sobre a prisão em flagrante delito o artigo 302 do CPP ( Código de Processo Penal) nos informa quatro modalidades de flagrante delito. No presente caso, a norma vem prescrita no inciso I do artigo: “Considera-se em flagrante delito, quem: I- está cometendo a infração penal.”
Ainda, o artigo 303 do CPP traz regra que indica: “Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência”.
Isto posto, podemos considerar como válida a prisão em fragrante do acautelado.
Fiquei muito em dúvida se isso configura lavagem de dinheiro. Da leitura do enunciado, não se extrai nenhum ato adicional destinado a conferir aparência lícita ao valor (vale dizer, dolo de mascaramento). A meu ver, a conduta está no mesmo nível de "esconder dinheiro sob o colchão", em que a doutrina entende não caracterizar lavagem. Para corroborar, trago assertiva do concurso para Promotor de Justiça do RS (2016), considerada correta: "Investigado por corrupção, ex-secretário de Obras Públicas da Argentina dos governos Kirchner foi preso quando prestes a enterrar milhares de dólares no terreno de um mosteiro, na província de Buenos Aires. O colombiano Pablo Escobar, conhecido narcotraficante dos anos 80/90, enterrava dinheiro oriundo do tráfico de entorpecentes. Nestas situações é razoável afirmar, à luz da doutrina especializada e de precedentes jurisprudenciais, que enterrar dinheiro produto do crime antecedente, ainda que seja para ocultá-lo, não se enquadra no tipo assimétrico da lavagem de dinheiro, se desacompanhado de um ato adicional ou contexto capaz de evidenciar que o agente realizou a ação com a finalidade específica de emprestar aparência de licitude aos valores escondidos" (Q713828, no QConcursos).
Assim, entendo que não há flagrante de lavagem, na situação. Sequer há flagrante presumido pelo roubo, haja vista o tempo transcorrido.
Prezado, parabéns pela explanação, demonstrou amplo conhecimento sobre o tema, abordando o direito comparado e citando questões de ordem temporal.
realmente considero uma prova modelo, a qual o examinador utilizaria para balizar os demais concorrentes.
A única coisa que poderia ser evitado é a citação completa de texto de lei em " " , mas no seu caso, não acarretaria em perca de pontos.
" Embora não estivesse em vigor a Lei 9.613/98 quando o crime
antecedente (corrupção passiva) foi praticado, os atos de lavagem
ocorreram durante sua vigência, razão pela qual não há falar em
retroatividade da lei penal em desfavor do réu. A Lei 9.613/98 aplica-se
aos atos de lavagem praticados durante sua vigência, ainda que o crime
antecedente tenha ocorrido antes de sua entrada em vigor." AÇÃO PENAL 863 STF.
Conclusão: Romildson, sua resposta está perfeita!
ERRATA: A ocultação do dinheiro objeto do roubo (20/06/12) permaneceu até a data de 03/01/13. Nesta data, já tinha entrado em vigor a lei que permitiu o rol aberto para crimes antecedentes à lavagem. Assim, como o crime de lavagem na modalidade de "ocultação" é crime permanente, ou seja, "protraindo-se sua execução até que os objetos materiais do branqueamento se tornem conhecidos"(A.P. 863 STF), a prisão em flagrante é válida (S. 711 STF: lei penal mais grave aplica ao crime permanente se a vigência é anterior à cessação da permanência - no flagrante é que cessou e a lei já estava em vigor)
Destaco os pontos que mais gostei da sua resposta: fazer referência ao crime permanente na modalidade "ocultar" do crime de lavagem, que o crime de lavagem pode ser cometido pelo próprio sujeito ativo da infração antecedente (autolavagem), indicar direito comparado (isso é excelente!!!), indicar a Convenção de Palermo (que autoriza a juízo do Estado-parte criminalizar ou não a autolavagem), ter mencionado que o rol da lei, antes de 2012 era taxativo, mas agora é aberto por conta da expressão “infração penal” no tipo penal, ter apontado as características, prova indiciária do crime antecedent
Romildson, sua resposta foi muito bem fundamentada, vc demonstrou muito conhecimento sobre o tema. O que faltou: ter mencionado o crime de roubo na resposta, falar mais sobre a prisão em flagrante e indicar que não caberia prisão em flagrante, já que não configuraria o crime de lavagem, posto que o rol era taxativo à época. A lei que tornou o rol aberto entrou em vigor em 09/07/12, ou seja, após a data da flagrância do enunciado (20/06/12). Informação: o limite de linhas era 60. Dica: não copie o texto de lei com aspas, use suas palavras para fazer referência (enriquece mais a sua resposta).
QUESTÃO
PEÇA
SENTENÇA
22 de Maio de 2018 às 23:29 Carolina disse: 0
Complementando, vejam o que diz o Renato Brasileiro: “A título de exemplo, por mais que sob um ponto de vista objetivo, o ato de esconder dinheiro embaixo tem um colchão perfaça ocultação de que trata o art. 1o, caput, da Lei n. 9.613/98, tal conduta somente poderá ser tipificada como lavagem de capitais se a ela que somar a intenção do agente de reintegrar aquele numerário ao círculo econômico com aparência lista. Portanto se a ocultação for perpetrada pelo agente com o único objetivo de aguardar o melhor momento para usufruir do produto da infração antecedente, e não o objetivo de lhe conferir aparência supostamente lícita, ter-se-á mero exaurimento da infração antecedente, jamais a prática do crime de lavagem de capitais” (Legislação criminal especial comentada, ed. 2017, p. 498).